
“O povo waimiri atroari nunca ficou sossegado. Nunca nos deram a oportunidade de pensar direito.”
Em poucas frases, Ewepe Marcelo Atroari, 52, resume um sentimento comum, o de desassossego, e alude ao histórico de pressão ininterrupta sobre o território dos kinjas (pronuncia-se quinhás), como se denominam os indígenas da terra Waimiri Atroari, no Amazonas e em Roraima.
“Aqui não tem muito velho. As lideranças têm entre 48 e 52 anos”, diz ele.
Grandes empreendimentos da ditadura militar, tocados sem qualquer consulta ao povo indígena de recente contato, provocaram uma redução drástica da população no território naquela curva da história. Os kinjas quase desapareceram.
A BR-174, que corta o território tradicional para conectar Manaus a Boa Vista, foi construída a um custo trágico: a população foi reduzida de 1.500 para 374 indígenas, ao fim das obras iniciadas em 1971. As mortes ocorreram em razão da ofensiva do Exército e de doenças até então distantes do território, como sarampo, catapora e malária.
Na década de 1980, uma mineradora se instalou na região, contaminando a água dos kinjas. Depois, a usina hidrelétrica Balbina inundou 30 mil hectares da terra indígena, deslocando aldeias e gerando cemitérios de árvores e desorientação espacial.
Agora, um novo empreendimento ganhou corpo, remetendo às grandes obras no período da ditadura dos militares: a construção de uma linha de transmissão de energia entre Manaus e Boa Vista.
O linhão de Tucuruí —com 724 km de extensão, quase 1.400 torres de energia com altura superior à copa das árvores amazônicas, uma infinidade de cabos e três subestações— finalmente conectará Roraima ao SIN (Sistema Interligado Nacional), interrompendo a dependência do estado da energia gerada em termelétricas movidas a diesel e a gás natural.
O linhão segue o curso da BR-174, alternando os lados a depender das adaptações necessárias no caminho, como desviar de uma aldeia. E tem seu ponto mais importante e delicado quando cruza a Terra Indígena Waimiri Atroari. No território, são erguidas 237 torres, algumas com quase 100 m de altura, por 122 km de extensão.
As obras estão em ritmo avançado, e o governo Lula (PT) planeja concluir o linhão em setembro. O início da operação comercial seria em dezembro, segundo a previsão do Ministério de Minas e Energia.
Centenas de trabalhadores contratados pela empresa que presta serviço à Transnorte Energia, o consórcio formado entre Alupar e Eletronorte, responsável pelas obras do linhão, estão dentro da terra Waimiri Atroari para erguer as torres de ferro galvanizado, abrir praças de lançamento de cabos e lançar os cabos até que fiquem instalados em paralelo sobre a floresta.
Esses homens, em sua grande maioria jovens migrantes de Maranhão e Piauí, ganham dimensões minúsculas quando são vistos colados nas estruturas das torres ou pendurados nos cabos para ajustes necessários.
Mas é em solo que se materializa uma mudança decisiva na forma como um empreendimento desse porte é executado dentro de um território de indígenas de recente contato: os kinjas assumiram um protagonismo real na fiscalização das obras, com monitoramento dos passos de pessoas estranhas ao lugar e alterações das atividades, quando possível, em relação ao impacto das obras.
É a primeira vez que os kinjas participam de cada etapa das obras físicas, numa tentativa de redução de danos causados por mais uma ofensiva indesejada. O modelo adotado não foi visto em outros grandes empreendimentos na amazônia.
“Desde 2011, o povo waimiri atroari ficou muito preocupado com o linhão. A gente fez a proposta de que não passasse aqui, que passasse pelo rio Branco”, afirma Marcelo, um dos coordenadores da fiscalização feita pelos indígenas.
“A gente sofreu muita ameaça no começo dos estudos, pois diziam que a gente era um obstáculo, que atrapalhava. O que a gente queria era entender. E, se o linhão passaria aqui, então era preciso ouvir o povo do local”, diz ele.
Os kinjas permitiram que a Folha registrasse o trabalho de fiscalização feito por um dos grupos de indígenas. A reportagem percorreu ainda os 724 km do linhão, entre Manaus e Boa Vista, para documentar a consolidação do empreendimento.
Um grupo de monitoramento é composto por 35 indígenas, que se revezam a cada mês. São eles os responsáveis por acompanhar as obras, com a definição de regras de respeito ao território e seus moradores.
Nas margens da BR-174 não se veem mulheres e crianças —houve uma instrução para que a circulação por esses lugares fosse a mínima possível, diante da presença das centenas de operários do linhão. E isso já dura quase dois anos.