
Um vírus letal atinge a população de ararinhas-azuis que vive no interior da Bahia, parte de um projeto de reintrodução à natureza conduzido pela ONG alemã ACTP (Associação para a Conservação de Papagaios Ameaçados) e pela empresa brasileira Blue Sky, cujo acordo com o governo brasileiro foi rompido em 2024.
A informação sobre o surto de circovírus foi divulgada pelo Ministério do Meio Ambiente na segunda-feira (28) e confirmada pela ACTP nesta quarta (30). Até aqui, 14 aves estão contaminadas, incluindo um filhote que estava em vida livre.
O ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) suspendeu o programa de reintrodução e proibiu novas solturas de aves, ordenando uma série de medidas para conter a transmissão do vírus.
Em nota, o ICMBio disse ter determinado “o recolhimento das ararinhas-azuis de natureza, para que sejam submetidas a bateria de testes, resguardando assim a sanidade da população”. A Blue Sky, entretanto, disse ao portal UOL que não fará a captura das aves em vida livre por não ter autorização ou espaço para os animais, afirmando ainda que tentativas nesse sentido podem causar estresse ou até mesmo matar ou ferir as ararinhas.
Biólogos e veterinários ouvidos pela Folha são unânimes em dizer que a captura é uma medida essencial e obrigatória quando há casos de doenças em programas como esse, e que as afirmações da Blue Sky não fazem sentido.
“É urgente, imprescindível e fundamental que as aves que estejam ainda soltas sejam imediatamente recapturadas e novamente mantidas em cativeiro até que os exames necessários em todo o plantel sejam refeitos”, diz Luís Fábio Silveira, curador da seção de aves do Museu de Zoologia da USP (Universidade de São Paulo).
Para ele, é improvável que o circovírus estivesse circulando na natureza em uma área remota como Curaçá, no interior da Bahia, onde acontece a soltura das ararinhas-azuis, o que indica que o surto poderia ter origem na população em cativeiro.
“O próprio [ICMBio], em estudos prévios, não detectou o circovírus nas aves de vida livre antes da reintrodução das ararinhas”, diz Silveira. “É importante ressaltar que há um risco real de que a única localidade até hoje compatível [com a soltura], Curaçá, já possa ter sido contaminada com um vírus letal, o que implicaria em um problema ainda maior para o projeto.”
O biólogo diz ainda que capturar as ararinhas-azuis “é viável e não é nada complexo, dado que elas vivem e circulam perto do viveiro de soltura, e se alimentam ali por perto”. “Qualquer projeto de reintrodução no Brasil precisa de um plano de contingência, e a recaptura está sempre prevista em casos extremos, e esse é um caso clássico”, afirma também.
A ararinha-azul é uma das aves mais raras do mundo, com apenas 328 espécimes existentes no planeta e somente 11 na natureza, soltas no seu único habitat natural, a caatinga da Bahia, como parte do programa de reintrodução.
O circovírus causa a chamada doença do bico e das penas. A enfermidade não tem cura, é crônica e termina por matar a ave na maioria dos casos. O vírus não é perigoso para humanos ou para aves de produção, como galinhas.
Em entrevista ao UOL, representantes da Blue Sky dizem acreditar que o vírus já esteja disseminado na região de Curaçá, onde funciona o programa de reintrodução. Se isso for verdade, seria o primeiro surto comprovado do circovírus em vida livre da história do Brasil, de acordo com especialistas ouvidos pela Folha.
“Como veterinários, nossa responsabilidade é soltar somente animais saudáveis, incluindo livre de circovírus”, afirma Gabriel Corrêa de Camargo, responsável pelo Centro de Medicina e Pesquisa em Animais Selvagens da Unesp (Universidade Estadual Paulista) em Botucatu.
“Minha opinião é que [as ararinhas] deveriam ser recolhidas e testadas. A disseminação do circovírus pode afetar inclusive outros psitacídeos da região”, diz.
Os psitacídeos são pássaros da família Psittacidae, isto é, papagaios, araras e periquitos, que costumam ser acometidos pela doença. O vírus é encontrado em aves exóticas que chegam ao Brasil sem o devido controle —muitas vezes, fruto de tráfico de animais.
“No caso das ararinhas-azuis, esse animais vieram da Europa, e uma das hipóteses é que eles não tiveram o devido controle sanitário”, afirma a médica veterinária Alice Soares de Oliveira. “Eles deveriam ter entrado em protocolo de quarentena bem cuidadoso, por conta inclusive do circovírus, que, sabidamente, é prevalente na Europa”, diz a médica.
Alice explica que filhotes de aves costumam morrer mais rapidamente da doença, enquanto adultos desenvolvem problemas neurológicos, intestinais e chegam até mesmo a perder todas as penas antes de morrer. Para ela, a explicação da Blue Sky é “descabida”. “O risco de contaminação é muito maior do que o de ferir as aves [na captura].”
O programa de reintrodução da ararinha-azul é permeado por disputas constantes entre a ACTP, a Blue Sky e o governo brasileiro. A relação se deteriorou depois que o ICMBio identificou uma “transação comercial fora do escopo do trabalho de conservação” ao enviar 26 ararinhas-azuis para um zoológico na Índia de propriedade de um bilionário do setor petroquímico.
Além disso, a ACTP fez transações de ararinhas-azuis em valores estimados de € 75 mil (cerca de R$ 478 mil) por ave. Em um dos casos, a ONG emitiu uma fatura cobrando € 300 mil (R$ 1,91 milhão) de um zoológico na Bélgica por quatro espécimes, de acordo com o governo alemão.
O ICMBio, a Blue Sky e o biólogo da ACTP responsável pelo programa de reintrodução, Cromwell Purchase, não responderam a perguntas da Folha sobre o vírus até a publicação desta reportagem.
Ao UOL, Purchase disse que, se as aves forem recolhidas, “a ararinha-azul estará extinta não apenas novamente, mas para sempre nas áreas selvagens do Brasil”. “Nenhum detentor internacional de ararinhas jamais confiará no Brasil de novo para mandar mais aves”, afirmou ainda.