
O Supremo Tribunal Federal está prestes a tomar uma decisão que pode reconfigurar a liberdade de expressão no Brasil.
O julgamento do Artigo 19 do Marco Civil da Internet, que exige decisão judicial para a remoção de conteúdos publicados por terceiros, ameaça abrir um precedente perigoso: permitir que plataformas sejam obrigadas a apagar conteúdos mediante simples notificação, sem mediação do Judiciário.
Na prática, isso institucionalizaria uma forma de censura protocolar e silenciosa. As plataformas, com receio de punições, tenderão a remover qualquer conteúdo que pareça controverso ou sensível —mesmo que legítimo. O resultado será um ambiente digital autocensurado, onde críticas, denúncias e manifestações políticas desaparecerão sem contraditório.
Mas seria simplista responsabilizar apenas o Supremo. O Judiciário está sendo provocado e, diante da omissão legislativa, precisa decidir. Sem leis atualizadas e específicas, recorre à hermenêutica, à Constituição e, por vezes, ao bom senso.
O Estado não pode se omitir diante da manipulação digital, e foi exatamente isso o que ocorreu nas eleições de 2022. Coube à ministra Cármen Lúcia, no TSE, liderar audiências públicas e estabelecer normativas emergenciais que garantiram alguma proteção ao pleito. Sem aquela intervenção, a desinformação e o uso destrutivo da IA teriam causado ainda mais danos.
A atuação do Judiciário, embora necessária, não pode substituir a do Parlamento. Julgar é urgente, mas legislar é insubstituível. E, enfim, sinais positivos começam a surgir.
Sob a liderança do presidente da Câmara, Hugo Motta, dois movimentos importantes foram colocados em marcha: a instalação da Comissão Especial para a Regulamentação da Inteligência Artificial e a abertura, na Comissão de Comunicação, de uma frente contra a censura nas redes. Ambos representam a possibilidade concreta de o Congresso retomar seu protagonismo.
Essas iniciativas mostram que é possível proteger a liberdade de expressão sem ignorar a urgência da regulação. Não se trata de escolher entre censura e caos. Trata-se de garantir que o debate público continue sendo livre, plural e fundamentado em regras legítimas e democráticas.
Enquanto isso, a tecnologia avança. A IA generativa já cria vídeos e falas falsas com perfeição técnica. Mas mais perigosa é a IA preditiva, que molda comportamentos e conduz opiniões antes mesmo que tenhamos consciência disso. Não se trata apenas de acreditar em mentiras, trata-se de desejar e defender essas mentiras como se fossem nossas. Trata-se de engenharia de consciência. De pastoreio digital. E isso já está acontecendo.
O que está em julgamento agora não é apenas uma cláusula legal; é o próprio futuro do contraditório democrático. Porque o que está em curso não é só um risco à democracia —é a substituição da democracia por uma ficção algorítmica. Quando tudo pode ser fabricado, a verdade se torna obsoleta. E, com ela, a liberdade de decidir.
O Parlamento ainda tem tempo —pouco, mas tem— para reagir com grandeza. O STF precisa decidir com responsabilidade, mas sua atuação será sempre paliativa se continuar a ocupar o espaço deixado por um Legislativo omisso. E as plataformas precisam assumir compromissos reais com rastreabilidade, transparência e responsabilidade. O argumento da “neutralidade algorítmica” já não se sustenta.
A urgência não é mais só jurídica. É existencial. O que está em jogo é se poderemos continuar confiando no que vemos, ouvimos e acreditamos. Se o Brasil não reagir agora, corremos o risco de viver sob uma democracia de aparência —moderna, digitalizada, mas absolutamente manipulada.
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