
Vamos tirar o bode da fala. “As piadas de português ficam sempre num ambiente desconfortável”, diz o humorista e escritor Ricardo Pereira Araújo, que parece muito confortável em distensionar qualquer tensão no auditório da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty.
“Vocês sabem o que fizeram, não é?”, devolveu à plateia o lusitano em terras brasileiras, que dividiu a última mesa deste sábado (2) com o linguista Caetano W. Galindo. Nas tão populares piadas do português, afirmou Araújo, que é também colunista da Folha, o protagonista “tem um raciocínio que é fora do comum”.
Dá como exemplo “aquela cena célebre em que Jesus Cristo está perante a mulher adultera e diz que quem nunca errou que atire a primeira pedra”. O português vai lá, pega uma pedra e acerta a testa da mulher. “Jesus diz ‘nunca erraste?’, e o português: ‘A esta distância, nunca’.”
Após assuntos tão emocionalmente densos como feminicídio e aborto, que pautaram debates no dia com escritoras latino-americanas, o papo entre Araújo e Galindo devolveu a leveza e o riso para a Flip. A mediação da linguista Jana Viscardi, bem-humorada, reforçou o que já era um bom match entre convidados.
A mesa tinha como proposta “roçar a língua de Camões”, e por vezes parecia encoxá-la tamanho o entrosamento entre o trio. Até mesmo os pontos calvos dele e de Galindo eram os mesmos, reparou Araújo.
Uma diferença não passou despercebida. “Eu sou curitibano, onde o sotaque vai para morrer”, brincou Galindo na sua vez de falar, após lamentar que nem sequer tem como trunfo o “sotaque engraçado” do interlocutor europeu.
Professor universitário, Galindo escreveu “Latim em Pó: Um Passeio pela Formação do nosso Português” e “Na Ponta da Língua: Nosso Português da Cabeça aos Pés”.
“Ninguém está mais bem equipado para lidar com o mundo das fake news do que a gente na linguística”, defende sua categoria. “Primeiro, porque a gente está acostumado desde sempre a ter nossa autoridade questionada. Cada amigo nosso que é médico e diz ‘agora ninguém mais presta atenção, o Google vale tanto quanto eu’, eu digo, ‘bem-vindo’.”
Todo mundo acha que pode opinar na área porque, afinal, é tão falante da língua quanto quem a estudou por anos a fio.
“Etimologias falsas e fantasiosas”, segundo Galindo, circulam na internet e nos livros a todo momento. Tipo sustentar que a expressão “nas coxas” remete a telhas moldadas nas coxas de escravizadas e escravizados, lenda pop, mas inverídica.
Galindo disse que poderia dar 20 razões para desmentir esta e outras inverdades. “No entanto, a história falsa é mais crocantinha, ela é mais redondinha, ela é boa de contar. E é esse o mecanismo de fake news. Eu crio uma narrativa que é mais curta, que é mais interessante, que é boa de reproduzir e que tem esse arzinho de ‘eis a verdade que eles não querem que você conheça’.”
Araújo, que lançou neste ano “Coisa que Não Edifica Nem Destrói”, também nome de um podcast seu, reparou em outro fenômeno dos nossos tempos: os tais influenciadores digitais.
“Acho que há um problema de filosofia da linguagem quando uma pessoa se apresenta como influencer”, afirmou. “Qual o primeiro passo essencial para influenciar uma pessoa? É não revelar que estamos a tentar influenciá-la.”
Galindo falou também sobre correntes que defendem diferenciar uma língua portuguesa e outra brasileira. Não detecta “vontade política” para tanto no Brasil, mas gostaria de ver mais valorização de intervenções de povos indígenas e africanos na língua falada no país.
“O que se desenvolveu aqui foi uma variedade singular da língua portuguesa”, que “para nós é simultaneamente dádiva e castigo”, disse. “Nós somos definidos, em um sentido muito profundo, como os malucos esquisitos da América do Sul que falam português.”
O jeito é usar esse arsenal linguístico para rir de quem nos oprime, afirmou Araújo. Lembrou da conduta do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro na pandemia, minimizando a gravidade da doença. “Recordei aquelas palavras dele sobre Covid, que era sobre ‘meu histórico de atleta’ que o tornaria menos vulnerável ao vírus, que não será mais do que uma gripezinha.”
Agora, disse, talvez esse histórico de atleta faça com que uma possível condenação no Supremo Tribunal Federal “não seja mais do que uma prisãozinha”.