[RESUMO] Explorando a tensão entre regra e exceção, o autor argumenta que o desejo de controlar o outro nas relações, amorosas ou não, revela uma dinâmica marcada pelo medo e pela tirania do ego. A cura relacional surge da superação desse modelo patriarcal, por meio de uma entrega ao fluxo da dádiva, da confiança e da alteridade. A crise, longe de ser um problema, é o caminho para vínculos mais íntegros e libertadores, fundados na coragem de ser e de se encontrar.

Uma regra com 700 exceções confirma a regra ou as exceções? Este aparente quebra-cabeça lógico é, na verdade, um profundo espelho da alma humana e da natureza dos vínculos que estabelecemos. Ao estudar as dinâmicas da psique, observamos com frequência como as relações, que deveriam ser um campo fértil para o crescimento e a troca, se transformam em arenas de poder, controle e medo.

A proliferação de exceções em um acordo revela, quase sempre, uma patologia fundamental: a tirania do ego que, por insegurança, tenta legislar sobre o fluxo espontâneo da vida e do afeto, uma excrescência do patriarcado falocêntrico.

O relacionamento se afasta da sua vocação natural para a troca, e a confiança tende a se enrijecer em um sistema de regras. Esse movimento, invariavelmente, nasce do medo. O medo de ser traído, o medo do abandono, o medo da própria insuficiência.

Essa busca por controle é uma das grandes ilusões do homem contemporâneo, uma tentativa desesperada de aprisionar o outro para mitigar a angústia. A parte que impõe a regra, movida por sua insegurança, não busca um acordo bilateral, mas uma capitulação unilateral. Ela exige uma fortaleza de normas não para proteger o vínculo, mas para se proteger da vulnerabilidade que o amor genuíno exige.

Nessa dinâmica, o poder se estabelece como o antípoda do amor. O poder busca submeter, controlar, prever. O amor, ao contrário, busca libertar e confiar. Esta é a essência do dinamismo patriarcal que estrutura a psique de todos nós: um sistema que estimula hierarquias, polaridades, exclusão e competição. O ego que não está a serviço do self (o Si-mesmo) torna-se um pequeno tirano. Ele teme o inconsciente, teme a alteridade, teme tudo que não pode dominar. Assim, ele projeta suas próprias sombras e inseguranças no outro, tentando contê-las através de um código de conduta que ele mesmo não tem a intenção de seguir.

Em contraponto a essa dinâmica adoecida, encontramos a beleza dos vínculos baseados na dádiva. A teoria da dádiva nos ensina sobre a sabedoria ancestral do “dar, receber e retribuir”. Este ciclo não se baseia em contratos ou regras, mas em um fluxo que fortalece os laços. O desafio é deixar os “ismos” — e a própria lógica do controle é um “ismo” pessoal — nos degraus da história e virar a chave na direção da alteridade. A alteridade é o novo dinamismo que irá superar o patriarcado, estabelecendo um padrão de relações amorosas, integrais e unitivas.

Uma relação saudável se sustenta na confiança. Confiança, em sua essência, significa “fiar com”, tecer junto ao outro uma trama relacional forte e flexível. É um artesanato de almas, em que os nós são desfeitos com paciência para que os laços fiquem evidentes. O alicerce é o respeito, re-spectare, “olhar de novo” e se deixar olhar. É a capacidade de ver o outro em sua totalidade, com luz e sombra, e permitir-se ser visto da mesma forma. É uma relação “sem ceras”, sincera, onde as máscaras podem ser depostas. É nesse encontro genuíno, nesse exercício de alteridade, que a necessidade de controle se dissolve.

Como, então, escapar dessa armadilha? A resposta não está em criar regras melhores, mas em promover uma revolução interna.

Tais problemas só podem ser resolvidos por uma mudança geral de atitude. E esta mudança não se inicia com a propaganda ou com reuniões de massa. Ela só pode começar com a transformação interior, no caminho do corajoso processo de autoconhecimento que nos permite confrontar a própria sombra em vez de projetá-la.

A verdadeira liberdade em uma relação não vem da ausência de regras, mas da presença de um amor que transcende a necessidade delas. É o amor que nos impulsiona a superar o dinamismo patriarcal da era de Peixes, a era da polarização, e caminhar para a dimensão da alteridade da era de Aquário.

Quando deixamos de ir “contra a rolagem” natural da vida e abrimos mão do poder, descobrimos que o vínculo mais forte não é aquele amarrado por regras. É aquele tecido, fio a fio, pela confiança, pelo respeito e pela dádiva mútua.

A pergunta inicial, então, se resolve: uma regra com 700 exceções não confirma nada além do do medo como alicerce para a vida. A verdadeira confirmação de um vínculo saudável está na sua capacidade de florescer sem a necessidade de cercas, nutrido pela liberdade e pelo amor que ousa confiar na alteridade.

O impasse criado pela dialética entre a regra e a exceção é um beco sem saída, um ciclo estéril de ressentimento e transgressão. É a encenação de um “duplo monstruoso”, para usar a expressão de René Girard, em que cada polo, inconscientemente, alimenta o seu oposto, mantendo a polaridade e a dor.

A regra opressora gera a exceção dissimulada, e a exceção confirma a necessidade (ilusória) de mais regras. Esta é a prisão do “espírito da época”, que nos impede de mergulhar no “espírito das profundezas”, onde a verdadeira cura reside. Mas como quebrar este ciclo?

A saída não está em negociar melhores regras ou em criar exceções mais justas. A saída está na crise. É preciso “polemizar para polinizar”. O colapso desse sistema de controle não deve ser visto como o fim da relação, mas como o fim de uma forma adoecida de se relacionar. A crise, quando encarada com coragem, é o portal para a criatividade. É o momento em que a psique, exausta do conflito, se abre para o novo, como diria Jung.

Essa transformação é um chamado radical ao indivíduo. A mudança coletiva do “nós” só ocorre a partir da metamorfose do “eu”. Aquele que impõe a regra é convocado a encarar o abismo do seu próprio medo, a sua sombra de insegurança e a sua necessidade de poder. Ele precisa se perguntar: “O que em mim é tão frágil que precisa aprisionar o outro para se sentir seguro?”.

Por outro lado, aquele que se submete à regra e vive na exceção também precisa assumir sua responsabilidade. Ele é convocado a questionar sua própria cumplicidade, o medo da liberdade e os benefícios secundários que obtém ao permanecer nesse jogo de poder.

Quando esse confronto com a própria sombra acontece, algo novo pode surgir. Não se trata de escolher entre a regra (tese) e a exceção (antítese). Trata-se de permitir o nascimento do tertium non datur — o terceiro elemento não dado, a síntese criativa.

Este “terceiro” é a própria relação transformada, renascida sob o signo da alteridade. É um estado de ser em que a vulnerabilidade deixa de ser um risco a ser controlado e passa a ser o solo sagrado do encontro. A comunicação deixa de ser uma negociação de limites para se tornar uma partilha de mundos internos.

O amor, nessa perspectiva, revela sua verdadeira face: não um sentimento passivo, mas uma força ativa, uma práxis transformadora. É a coragem de viver no mistério, sem garantias, fiando-se apenas na trama que se tece a cada dia no encontro genuíno entre duas liberdades.

Somente assim, superando a tirania dos “ismos” internos e externos, podemos esperar construir relações que sejam verdadeiras obras de arte, reflexos da beleza, da bondade e da verdade que habitam as profundezas da alma humana.



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