
Por professor e jornalista Sadraque Rodrigues – Portal Colombense
Num país em que a infância deveria ser prioridade absoluta, a realidade brasileira é devastadoramente oposta. A escalada de casos de abuso e exploração sexual infantil revela o colapso moral e funcional de um Estado que, institucionalmente, tem virado as costas para suas crianças. O crescimento exponencial das denúncias nos últimos anos não é fruto apenas de maior conscientização e canais de denúncia mais acessíveis, mas também de uma epidemia silenciosa de permissividade e negligência institucional. É hora de encarar esse drama como ele é: uma tragédia nacional de proporções devastadoras, que clama por ação efetiva, imediata e inegociável.
A violência sexual contra crianças é um crime hediondo. Ela dilacera biografias, suprime futuros, destrói identidades em formação. Quando uma criança é violentada, não apenas ela sofre: toda a sociedade é atravessada por essa ruptura moral. E ainda assim, o Estado — nas suas múltiplas esferas — falha em oferecer respostas adequadas. Em muitos casos, a vítima sequer tem acesso ao acolhimento psicológico especializado. Delegacias não possuem estrutura ou pessoal treinado. Conselhos tutelares operam no limite da exaustão, com verbas irrisórias e dependência de vontades políticas locais. Faltam planos de enfrentamento articulados, e sobram discursos vazios e campanhas genéricas.
Não há mais espaço para evasivas ou tergiversações. O crescimento das denúncias precisa ser acompanhado de uma ofensiva institucional enérgica. O discurso da proteção integral precisa sair das normativas e ganhar o chão da realidade. A ausência de investimentos reais em políticas públicas específicas não é só descaso — é cumplicidade indireta. Porque, enquanto os agressores agem com audácia, o poder público se arrasta entre burocracias, cortes orçamentários e falta de prioridade política. A criança abusada não pode esperar. O trauma não espera por licitações. O atendimento especializado não pode ser pauta futura — ele é emergência permanente.
A omissão tem múltiplas faces. Começa pela falta de prevenção: escolas despreparadas para identificar sinais, ausência de campanhas educativas contínuas e linguagem acessível para o público infantil. Prossegue na falência do sistema de proteção: ausência de fluxos claros de atendimento, comunicação precária entre órgãos públicos, judicialização lenta e repleta de gargalos. Culmina na impunidade: penas leves, reincidência garantida, invisibilidade dos casos que não viram estatística. O ciclo da violência se perpetua quando o Estado falha em cada uma de suas etapas.
A sociedade brasileira precisa encarar a realidade com a crueza que ela exige. Em pleno século XXI, não há mais como justificar a existência de cidades sem delegacias especializadas, sem psicólogos infantis em suas redes públicas de saúde, sem formação continuada para professores e conselheiros tutelares. O combate ao abuso sexual infantil não pode ser uma ação isolada de uma secretaria ou de um mandato. Ele precisa ser política de Estado, transversal, contínua e articulada. Não basta reagir ao escândalo. É preciso agir antes dele acontecer. É preciso blindar as crianças com todas as ferramentas possíveis — legais, psicológicas, educacionais e sociais.
Ao lado da prevenção e da punição adequada, é imprescindível o fortalecimento da escuta protegida. A revitimização de crianças no sistema de justiça é uma chaga que ainda não foi superada. Crianças que ousam romper o silêncio enfrentam um calvário institucional que, muitas vezes, as submete a mais violência. Interrogatórios múltiplos, ausência de ambientes acolhedores, profissionais despreparados — tudo contribui para aprofundar traumas já insuportáveis. Isso não é justiça. Isso é repetição do abuso sob outra forma, com o selo do Estado.
Outra dimensão negligenciada é o crescimento da pedofilia digital. Plataformas online, redes sociais, aplicativos de troca de imagens — tudo isso virou terreno fértil para criminosos agirem de forma anônima e sistemática. A resposta do Estado brasileiro ainda é tímida. Poucas delegacias contam com núcleos de inteligência digital. Faltam profissionais capacitados para rastrear esses criminosos. Faltam campanhas educativas sobre segurança digital infantil. E, principalmente, falta a compreensão de que o abuso virtual é tão destrutivo quanto o físico. A tecnologia não pode continuar sendo aliada da impunidade.
A responsabilidade é compartilhada, mas o Estado tem papel central. Ele detém o monopólio da proteção legal, dos instrumentos de segurança, da formulação de políticas públicas. Quando ele falha, não há sociedade civil que consiga compensar o vazio institucional. A atuação de organizações não governamentais, coletivos e projetos sociais é louvável, mas insuficiente. A responsabilidade primeira, intransferível e inadiável, é do Estado.
A Constituição brasileira garante à criança o direito à proteção integral. Esse não é um enunciado retórico — é cláusula pétrea, princípio civilizatório, obrigação legal. Cada caso de abuso não atendido, cada criança sem apoio psicológico, cada agressor impune, é uma afronta direta à Constituição. Um país que se pretende democrático e justo não pode permitir tamanha desconexão entre norma e prática. A democracia começa pela proteção dos seus mais vulneráveis. Se não protege as crianças, a democracia é apenas uma formalidade vazia.
Este texto não busca comoção barata. Busca indignação consequente. Busca a mobilização consciente de todos os setores sociais. É necessário que juízes, promotores, policiais, médicos, professores, assistentes sociais, jornalistas e cidadãos em geral reconheçam sua parcela de responsabilidade no enfrentamento dessa barbárie. Não se trata de um problema de nicho. Trata-se de uma chaga nacional. E não há projeto de futuro possível onde a infância esteja sendo destruída com tamanha normalidade.
O combate à violência sexual infantil deve ser elevado ao mesmo patamar de importância que os grandes debates nacionais. Deve estar nas pautas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Deve ser objeto de pactos federativos e compromissos internacionais. Deve ser tema permanente nos fóruns de educação, saúde, justiça e segurança pública. E, acima de tudo, deve ser visto como questão de honra nacional. Um país que não protege suas crianças não pode reivindicar respeito nem prosperidade.
Não é tarde para mudar essa realidade. Mas o tempo urge. A cada dia de omissão, uma nova infância é destruída. Uma nova vítima é silenciada. Um novo agressor se sente autorizado a agir. O ciclo da violência só será interrompido quando a indignação moral se transformar em ação política. Quando a prioridade retórica virar orçamento real. Quando a promessa institucional virar acolhimento concreto. Quando o país se recusar, definitivamente, a aceitar o inaceitável.
Este jornalista escreve não apenas como profissional, mas como cidadão. Como alguém que se recusa a normalizar a dor. Que não aceita o silêncio como resposta. Que não tolera a negligência como rotina. Porque há coisas que não podem ser relativizadas. A proteção da infância é uma delas. A omissão diante da violência sexual infantil é mais do que erro administrativo — é crime moral. E, diante de crimes, o único lugar possível é a denúncia, a ação e a urgência.
Professor e jornalista Sadraque Rodrigues – Portal Colombense