Enquanto a humanidade discute os potenciais perigos da inteligência artificial convencional, o físico Paul Davies, 79, professor da Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos, já se pergunta sobre o que será dessa tecnologia quando for desenvolvida com base em futuros computadores quânticos. Segundo ele, pode não ser muito diferente de uma inimaginável olhada sobre o que seria a hipotética mente de Deus.

“O mundo ficou louco pela noção do computador quântico. É uma coisa hipotética, mas, se você tivesse um computador quântico com apenas 200 componentes conectados de forma apropriada, teria mais poder de computação do que o Universo inteiro transformado em um gigantesco computador convencional”, disse o britânico, em entrevista por videoconferência, à Folha.

“Eu gosto de pensar nisso de uma forma bastante filosófica. Uma IA quântica seria consciente de uma forma que os humanos nunca poderiam ser, porque teria acesso a um número exponencialmente maior de estados quânticos. Não podemos nem imaginar como se sentiria, que processos mentais ocorreriam dentro dessa entidade. Agora estamos nos reinos da ficção científica.”

Essa talvez seja apenas a mais maluca das possíveis tecnologias da nova revolução quântica que, segundo Davies, já está em curso. Ele defende a tese em seu mais novo livro, “Quantum 2.0”, que será lançado no fim deste ano, e aborda não só a história da mecânica quântica, mas as tecnologias que ela já produziu e as que vai gerar nos próximos anos.

Davies está no Brasil para participar da Escola de Biologia Quântica, que será realizada entre os dias 11 e 15 deste mês em Paraty (RJ), evento organizado pelo Idor (Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino) que explorará as relações entre a mecânica quântica e os processos biológicos.

Confira a seguir trechos da conversa com a Folha, em que ele também aborda temas como os mistérios das interpretações da mecânica quântica sobre a natureza da realidade e as perspectivas na busca por uma teoria que seja capaz de conciliar os dois principais pilares da física moderna em um único arcabouço.

Já se passaram cem anos desde a criação da mecânica quântica, e faz cem anos que alguns cientistas tentam derrubá-la ou ao menos dar sentido a ela. É uma causa perdida?

Pode parecer espantoso uma teoria tão bem-sucedida que cem anos depois você a observa pelos olhos de um físico teórico e pensa: “Isso não parece fazer sentido”. Ela descreve um mundo no qual fótons, átomos, elétrons e assim por diante, na verdade não têm propriedades bem definidas independentemente de nossa observação.

Quando olhamos para o micromundo, não descobrimos uma realidade pré-existente. O ato de inspecionar esse micromundo cria a própria realidade que vemos. Não percebemos isso na vida diária, mas, como a tecnologia moderna pode amplificar a incerteza do nível quântico para dimensões cotidianas, temos que confrontar o fato de que aqui está uma teoria da qual não sabemos o que fazer.

Agora, sua pergunta, “é uma causa perdida”? Bem, você pode muito bem pensar isso porque os argumentos sobre o que essa teoria significa começaram na década de 1930 e aqui estamos, quase na década de 2030, e há uma dúzia de interpretações diferentes. Se você conversar com qualquer físico, ele pode dizer: “Ah, faz perfeito sentido”. Mas eles não concordam entre si.

Além da questão filosófica, há um conflito na física porque precisamos conciliar a natureza quântica e a relatividade, uma teoria clássica, para entender coisas como o início do Universo e buracos negros. Será que isso não reflete apenas o que vemos na mecânica quântica em si, que, dependendo de como você questiona a natureza, ela lhe dá uma resposta ou outra? O mundo clássico e o mundo quântico não são versões diferentes da mesma realidade?

O que você está dizendo é verdade, e há uma escola de pensamento, minoritária, que pensa que talvez o campo gravitacional seja clássico, que não possa ser quantizado.

Eu mesmo trabalhei por muitos anos em uma versão de gravidade quântica onde você trata o campo gravitacional como apenas um fundo e olha para os processos quânticos acontecendo nesse fundo, e isso é muito frutífero. Foi a teoria que permitiu a Stephen Hawking dizer que buracos negros não são negros, mas brilham com radiação térmica.

O campo gravitacional não é quantizado nessa teoria. E o mesmo com a cosmologia do Universo primitivo, o chamado cenário inflacionário. Tudo isso é feito com um campo gravitacional de fundo clássico. Mas a maioria dos físicos sente que, no fundo, deve haver uma reconciliação emergente da mecânica quântica e da teoria gravitacional.

São os dois grandes triunfos da física do século 20: a teoria da relatividade geral de Einstein, que nos dá toda a astrofísica e cosmologia, e a mecânica quântica, que explica quase tudo mais.

Você sente que, de alguma forma, a unidade da física significa que deve haver uma teoria quântica da gravidade. Se houver algum jovem inteligente por aí que preste atenção a essas palavras, talvez se entusiasme em entrar na física teórica e procurar por essa teoria elusiva da gravidade quântica. Não a temos ainda, é um negócio inacabado.

E qual é a sua opinião pessoal, é uma busca frutífera?

Bem, eu continuo mudando de ideia porque fui cercado por tantas pessoas quando tinha 20 e 30 anos que pensavam: “Bem, estamos prestes a ter alguma teoria maravilhosa”. E passamos por cerca de quatro ou cinco delas, e a teoria das cordas se tornou a mais popular.

Mas vi pessoas dedicarem suas carreiras inteiras à teoria das cordas, e ela é matematicamente muito bonita, mas realmente não levou a nada.

Há uma questão filosófica mais profunda subjacente a tudo isso, que é: não há lei que diga que a mente humana, o cérebro humano, que afinal evoluiu por meios darwinianos para resolver problemas muito práticos, tem a capacidade de criar essa teoria final super-duper. Talvez simplesmente não tenhamos isso em nós. E também a maneira como a ciência procede é uma mistura de teoria e experimento.

Então, podemos sonhar com essas coisas maravilhosas como a teoria das cordas, mas, se você não pode conceber um experimento que a teste, podemos nunca saber as respostas. Tenho esperado por décadas e não estou prendendo a respiração de que será feito nos próximos dez anos. Talvez nos próximos cem.

Já algo que vai acontecer muito em breve é a revolução Quantum 2.0, de que o sr. fala em seu novo livro.

Certo, para saltar dessas grandes especulações cósmicas e teorias finais de tudo para a tecnologia muito prática e moderna. É bastante fascinante que a mecânica quântica tenha uns cem anos e nos tenha dado todas as coisas que, de certa forma, hoje consideramos garantidas.

Lasers e transistores e supercondutores e a internet e agora a IA, tudo isso flui do que poderíamos chamar de Quantum 1.0, a teoria original formulada nos anos 1920 e refinada nos anos 1930, uma teoria que não faz sentido, mas que funciona.

Agora estamos testemunhando o avanço das tecnologias a ponto de moléculas individuais, átomos individuais, até elétrons, fótons individuais, poderem ser colocados em estados muito específicos. Em outras palavras, podemos engenheirar estados quânticos no nível de partículas únicas. E isso proporciona um poder extraordinário para novas tecnologias, apelidadas de Quantum 2.0.

O exemplo mais famoso, de que todos estão falando: o mundo ficou louco pela noção do computador quântico. Ele pode manipular qubits individuais. É uma coisa hipotética, mas, se você tivesse um computador quântico com apenas 200 componentes conectados de forma apropriada, teria mais poder de computação do que o Universo inteiro transformado em um gigantesco computador convencional.

Mas, fazendo a transição para o que acho que é realmente a vanguarda mais rápida dessa Quantum 2.0, é o sensoriamento quântico, desenvolvimento de sensores para qualquer coisa que você queira medir, com precisão incrível.

Os estados quânticos são muito, muito frágeis. Isso torna algo como construir um computador quântico um enorme desafio. Mas essa própria vulnerabilidade o torna muito adequado para sensoriamento, porque, se algo é muito delicado, sentirá a menor perturbação.

Agora é possível fazer sensores, por exemplo, que podem medir minúsculas, minúsculas mudanças no campo gravitacional local. E o meu favorito, ainda é uma tecnologia em desenvolvimento: sensores quânticos que podem se conectar à sua cabeça e ler seus pensamentos. Estou dizendo isso dramaticamente, o que eles realmente fazem é medir a atividade elétrica dentro do seu crânio, uma aplicação médica não invasiva de sensoriamento quântico.

Isso é futurista, mas imagine que você possa sentar em sua sala de estar usando tal capacete e então operar um robô em Marte ou algo assim, apenas através do poder do pensamento.

Em contraste com os sensores, em que a natureza funciona para ajudá-los, dada a fragilidade dos estados quânticos, os computadores quânticos dependem de protegê-los, de agir contra a natureza. Podemos bater em uma parede com isso? A natureza claramente não quer que façamos isso com muitos quantum bits interagindo sem qualquer intervenção externa.

Você sabe, muitas vezes tive uma sensação secreta como essa. Se é possível, por que é tão difícil? E será que, como você disse, não fomos feitos para isso?

Poderia haver algo como retornos decrescentes. Tendemos a quantificar o progresso nessa área pelo número de qubits que podem se tornar emaranhados, conectados dessa forma misteriosa. Por muito tempo foram cinco, e então dez, 15 e 50 agora, mas tem sido muito, muito lento e está ficando cada vez mais lento.

E eu muitas vezes me pergunto se há um estudante inteligente que pudesse provar um teorema de que há um ponto além do qual você simplesmente não pode ir, porque, a cada vez que adiciona algo, abre a possibilidade de mais erros.

Eu muitas vezes me perguntei se esse ponto é cerca de 200 componentes ou partículas. Se isso representa um limiar por uma razão muito simples de que o estado quântico, descrevendo 200 átomos emaranhados, tem mais “ramificações” nele, mais componentes, do que todos os átomos do Universo. Então, parece que há uma espécie de razão cósmica pela qual algo pode dar errado nessa fase.

Em certo sentido, tentar construir um computador quântico nessa escala é o teste mais rigoroso da mecânica quântica que já foi concebido. Como você diz, é quase como se a natureza não quisesse que o fizéssemos.

O sr. veio agora ao Brasil para falar sobre biologia quântica, e, a julgar pelo seu livro, apesar do entusiasmo, tem algum ceticismo sobre isso.

Eu me caracterizaria como um cético interessado. Sou mente aberta, mas preciso ser convencido. Organizei um workshop de biologia quântica, isso foi provavelmente em 2003, e chamei-o assim, antes que praticamente qualquer um estivesse falando sobre esse assunto, porque eu estava intrigado.

Acho que se a biologia quântica existe como um assunto, eu ajudei a incubá-la, desde aqueles primeiros dias. Ao longo dos anos, organizei vários workshops. Acho que posso dizer sem ser muito controverso que claramente existem alguns exemplos onde organismos vivos estão fazendo uso de efeitos quânticos para obter um pouco de vantagem.

Um deles é a navegação de pássaros, usando o campo magnético da Terra, que parece estar associada a algum tipo de sensor quântico nos olhos dos pássaros. Outro é na fotossíntese, a maneira como a energia é transportada das moléculas que coletam os fótons que chegam para o centro de reação onde a química é feita.

Então, aqui e ali parece que talvez a mecânica quântica esteja dando vantagem aos organismos. Mas esses são apenas exemplos isolados em um fenômeno chamado matéria viva que é esmagadoramente apenas física clássica. É apenas isso, com alguns pequenos enfeites quânticos, como parece agora, ou estamos vendo a ponta de um iceberg quântico? Não acho que temos a resposta para isso.

O cético diria, bem, olhe, são apenas alguns truques quânticos que a vida aprendeu. Ela teve muito tempo para fazê-lo. Eu vim ao Brasil para tentar me convencer de que há mais. Eu gostaria de acreditar que há mais e gostaria de saber o tipo de experimento que poderia ser usado para investigar isso.

No livro, o sr. aborda o conceito de inteligência artificial quântica. Estamos agora lutando com inteligência artificial, ponto, e já é difícil o suficiente. Ela pode trazer coisas maravilhosas. Pode ser também muito perigosa. E o sr. fala sobre inteligência artificial quântica, que compara a propriedades divinas. Quão perigoso é isso? Não é a hubris definitiva, inventar Deus?

Toda nova tecnologia tem o potencial para o bem e o potencial para o mal. E isso vai desde o fogo sendo usado para manter as pessoas aquecidas e sendo usado para queimar uma aldeia. Chegando à IA quântica, o ponto aí é que os computadores quânticos serão exponencialmente mais poderosos.

Se isso for tecnicamente viável, se todos os problemas forem resolvidos nos próximos 10, talvez 20 anos, você realmente teria um sistema que teria habilidades surpreendentes, habilidades divinas, como escrevi. Não teríamos ideia para onde isso levaria. Pode ser assustador ou cativante, dependendo do seu ponto de vista. Isso é muito especulativo sobre o futuro, mas está chegando rápido.

Acho que esse é o ponto. E eu gosto de pensar nisso de uma forma bastante filosófica. Não apenas que seria muito mais rápido, e muito melhor em ver padrões e fazer conexões, mas que realmente, se quisermos atribuir consciência à IA, ainda não chegamos lá, mas digamos que sim, então uma IA quântica seria consciente de uma forma que os humanos nunca poderiam ser, porque teria acesso a um número exponencialmente maior de estados quânticos.

Não podemos nem imaginar como se sentiria, que processos mentais ocorreriam dentro dessa entidade. Agora estamos nos reinos da ficção científica. Mas, como eu disse antes, pode não demorar muito.


Raio-X | Paul Charles William Davies, 79

Londres, 1946. É físico, escritor e atualmente professor da Universidade Estadual do Arizona, nos Estados Unidos. Seus principais interesses de pesquisa são nos campos da cosmologia, da teoria quântica de campos e da astrobiologia. É desde 1974 autor de livros de popularização da ciência, com dezenas de títulos publicados. O próximo, “Quantum 2.0”, será lançado até o final de 2025.



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