Façamos um teste rápido de associações verbais aqui. Quando você lê as palavras “agricultura”, “pecuária” e “Espanha“, quais são as primeiras coisas que lhe vêm à cabeça? Para quem já teve contato com alguma versão de “Dom Quixote”, desconfio que moinhos de vento branquinhos, ovelhas e queijos apareçam no topo da lista. Outras pessoas provavelmente pensarão em vinho e azeite.

E em canibalismo, claro.

Não? É, imaginei que “canibalismo” não fosse aparecer nesse bingo, mas tudo é uma questão de perspectiva. Basta voltar uns poucos milhares de anos no passado.

Essa, com efeito, é uma das conclusões de uma pesquisa fascinante e assustadora em igual medida, que acaba de sair no periódico especializado Scientific Reports. O estudo nos transporta para o Neolítico espanhol, há 5.500 anos, quando o avanço da agricultura e da criação de animais por aquele canto da Europa provocou mudanças populacionais, conflitos sangrentos e circunstâncias em que seres humanos transformavam seus semelhantes em parte do cardápio –aparentemente não como último recurso para matar a fome, mas para desumanizá-los.

(Atenção: leitores mais sensíveis devem prosseguir com cautela.)

O trabalho, liderado por Palmira Saladié, do Instituto Catalão de Paleoecologia Humana e Evolução Social, analisou um conjunto de restos humanos encontrados na caverna de El Mirador, que fica na região da cidade de Burgos.

Entre as centenas de fragmentos de ossos humanos identificados em El Mirador, um conjunto de 239 pedaços, correspondentes a pelo menos 11 indivíduos diferentes e idade estimada entre 5.700 anos e 5.600 anos, apresentam “assinaturas” muito sugestivas de práticas antropofágicas.

Vale a pena entender como os antropólogos chegam a essa conclusão. O principal critério que permite a detecção do canibalismo na pré-história é verificar que os corpos humanos foram tratados de forma análoga ao de animais abatidos para consumo.

Entre outras coisas, isso corresponde à presença de muitas marcas de corte em todas as partes do esqueleto, feitas tanto para desarticular os membros quanto para arrancar a pele, retirar os músculos e quebrar os ossos para obter tutano ou miolos (no caso do crânio).

Além disso, vários dos ossos humanos de El Mirador estão parcialmente carbonizados e apresentam um tipo de polimento nas pontas que é compatível com o cozimento em recipientes de cerâmica, durante o qual os ossos ficam raspando no fundo ou nas laterais do vaso. Por fim, há até marcas compatíveis com dentes humanos.

Os pesquisadores consideram pouco provável que a antropofagia ali tenha sido um ato de desespero porque há pessoas de todas as idades na amostra, enquanto, nos casos extremos de “canibalismo de sobrevivência”, o mais comum é a morte dos mais vulneráveis, como crianças e idosos. Além disso, não há indícios de fome ou grandes alterações ambientais na região nessa época.

Eles também dizem não acreditar num ritual funerário (algo que ocorre em culturas indígenas recentes mundo afora), porque parece se tratar de um episódio isolado naquela época, e não de uma prática recorrente. Por exclusão, a hipótese mais provável parece ser a da violência entre comunidades, algo que também aparece em outros locais da Europa, como a Alemanha e a França, ao longo do Neolítico. Nos contos de fadas desse passado, ao que parece, pastores e lobos podiam ser a mesma pessoa.


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