
Quando eu era um estudante colegial, inocente, puro e besta, achava que o mundo se dividia entre ricos e pobres, que os primeiros exploravam os últimos e o capitalismo selvagem transformava todos os seres humanos em mercadoria. Então fui fazer faculdade, li, discuti, ouvi excelentes professores e entendi que a realidade era mais complexa, cheia de nuances. Saí da faculdade, caí na vida, trabalhei e vivi o suficiente para chegar às minhas próprias conclusões: o mundo se divide entre ricos e pobres, os primeiros exploram os últimos e o capitalismo selvagem transforma todos os seres humanos em mercadoria.
Vejam só a IA, a maior ferramenta de pirataria da história. Como ela “aprende”? “Lendo” todos os livros disponíveis na internet, “vendo” todos os filmes, “escutando” todas as músicas. Daí faz um amálgama disso tudo e te vende, sem pagar direitos autorais. (Entenda “te vende” nos dois sentidos: vende pra você ao mesmo tempo em que, pegando seus dados, você é vendido). Perto de Sam Altman, Capitão Gancho parece a Sininho.
Nos anos 1980 tinha em São Paulo a Galeria Pagé, onde se compravam relógios e toca-fitas pro carro por uma pechincha. O segredo para os preços baixos era tão misterioso quanto o da Feira de Acari na música “W/Brasil”: a mercadoria era roubada. Mais de uma vez, criança, ouvi adultos reclamando que o som do carro tinha sido furtado. Era um som incrível, caríssimo, não teve jeito, o ultrajado foi na Galeria Pagé e comprou o mesmo modelo pela metade do preço. (Eu disse o mesmo modelo, mas talvez fosse exatamente o mesmo aparelho).
É assim que me sinto usando a IA —e tenho usado cada vez mais: indo na Galeria Pagé dar dinheiro pro ladrão que me rouba. É pior do que isso, porque o ladrão de toca-fitas não se transformava num ladrão de carros, depois num ladrão de casas e depois num sequestrador de avião. Já a inteligência artificial se agiganta a cada dia.
Sou roteirista e estou ao mesmo tempo maravilhado e aterrorizado com as possibilidades. (Quem é ator ou atriz deve estar apenas aterrorizado). O Jorge Furtado disse uma vez que se roteirista entendesse de produção, jamais colocaria numa rubrica essas cinco letrinhas C-H-U-V-A. São três segundos teclando a palavra e R$ 20 mil em caminhões pipa, um quiprocó terrível pra filmar, agente de ator dizendo que semana retrasada ele tava com pneumonia, que o contrato não previa chuva, que é preciso uma renegociação dos valores e sei lá mais o quê. Agora, numa tarde, um cara que manje bem das ferramentas disponíveis mete um toró numa cena de deserto em “Laurence da Arábia” e ainda consegue colocar o cabelo do Peter O’Toole lambido na testa. Se você quiser, ele também pode trocar o Peter O’Toole, no filme todo, pelo Agostinho Carrara. Ou, por que não, pela Peppa Pig?
Hoje, para fazer um filme, não é mais preciso de ator, cenógrafo, figurinista, câmera, diretor de fotografia, produtor de elenco, motorista, eletricista nem de outras centenas de profissionais envolvidos na produção audiovisual. Basta um roteirista, um diretor e alguém que saiba pedir pra IA o que os dois estão querendo. Logo logo, nem esses três serão necessários. A máquina vai fazer tudo sozinha.
Penso aqui com meus botões (do teclado): se estivermos todos desempregados, quem terá dinheiro para assistir aos filmes? Isso, claro, é o tipo de elocubração inútil e pessimista de quem quer se agarrar ao passado —Peter O’Toole, Jorge Ben Jor, Galeria Pagé, ó as referências… Vejamos pelo lado positivo: nós, seres-humanos, inúteis, cuspidos das cadeias produtivas, deixaremos enfim de ser uma mercadoria.
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