
Argila domina uma parede da galeria Marilia Razuk e o marrom se sobrepõe à tinta branca. Mãos deixam rastros pelo caminho e denunciam quem esteve ali. A pintura de Manuel Brandazza situa um salão repleto de criaturas. De tecido bordado e formatos incomuns, são seres presos ao teto que escapam do horizonte idealizado pelo argentino.
Na sala ao lado, os corpos da vez incluem outras matérias. O paraense Claudio Cretti mira a altura do olhar ao empilhar madeiras, mármore e outros elementos. Já as cerâmicas da paulistana Raphaela Melsohn obrigam o espectador a se preocupar com onde pisa. Os artistas compõem a mostra “Corpo de Prova”, em cartaz até 16 de agosto.
Emprestado da engenharia, o título determina materiais submetidos a testes de utilidade. “Primeiro, faço alusão ao corpo, à presença física do público e das obras. Eles se tornam provas, testemunhas um do outro. Mas também me refiro ao que os três verificam ao criar. Seus ateliês têm muito movimento, com muitas coisas feitas simultaneamente e, sobretudo, experimentos com materiais, técnicas e métodos novos”, afirma a curadora Camila Bechelany.
Segundo a curadora , a ideia é que o visitante vire um agente ativo. A posição das esculturas permite sua aproximação, e não existe um limite de ângulos para observá-las. É possível circundar membros da série “Mafuá de Trens” —brincadeira com o sentido mineiro da última palavra—, na qual Cretti combina fibras de palha, aros de latão, linhas enceradas e até frutas com cascas grossas.
São objetos, alguns inseridos na vida doméstica, outros em estados mais puros, que ganham novos significados na interação uns com os outros. Um dos trabalhos coroa uma pilha de madeira com uma pinça enorme, enquanto do outro caem esferas de metal, erguidas por fios de algodão. Itens concretos dão origem a abstrações, e nada é o que parece ser.
“Eu tento rebaixar a carga simbólica que esses materiais possam ter. Apesar de as peças revelarem algo, nunca se sabe exatamente o que está posto. O mistério que me move muito mais do que o significado anterior. Tento extrair deles o que há de essencial na própria forma”, diz Cretti.
Suas criações combinam elementos descartados e que em tese jamais se encontrariam. Sejam eles industriais, sejam de produção própria, ou tendo já passado por outros artesãos, podem exigir anos de tentativas e combinações.
Chama a atenção a escultura que usa hastes de um antigo guarda-chuva. Elas saltam para fora e protegem os demais componentes. Fixada a uma parede, a obra reforça o caráter coletivo da mostra ao exigir do espectador um cuidado maior.
Esse princípio de fragilidade se estende às cerâmicas de Melsohn. Marcas de dedos e revestimentos quebradiços reforçam a maleabilidade da argila, e a superfície registra as decisões que foram tomadas durante o desenvolvimento.
“As marcas imprimem o processo. Uma das propriedades da argila é sua capacidade de preservar a memória do encontro com o corpo que a manipula. É como se o material fosse uma folha para desenho. Ele pode terminar, mas se transforma em muitas outras coisas depois”, afirma Melsohn.
Suas esculturas se dividem em estruturas cilíndricas. As extremidades apresentam uma espécie de bocal, que sugere encaixes mesmo entre partes sem contato direto. É o caso de “Lovers”, em que duas colunas retorcidas apontam em direção uma à outra. Melsohn defende que o encontro entre as artes e o público é capaz de modificar os dois permanentemente.
“Uma vez me contaram uma história da mitologia grega. Segundo ela, quando os demônios saíam do inferno e vinham para a terra, a primeira coisa que procuravam para se situar no mundo dos vivos era uma pessoa. É a partir de um corpo humano que baseamos a escala daquilo que construímos.”
Ainda que de outro modo, Brandazza também se inspira em mitos. É de um rio de sua cidade natal, o Paraná, e de inspirações como a brasileira Maria Martins, reconhecida por retratar a Amazônia, que saltam os peixes que o argentino desenha e as divindades que pendura no ar.
Exemplo disso são as obras suspensas “Yara”, “XVTS” e “Mulher Monster Yara”. Com pérolas e traços de aquarela espalhados pelo corpos, os formatos inscritos em seda remetem a diversos animais. O acúmulo de contornos, brilhos e cores fora da realidade une diversas possibilidades num só conjunto.
Algo semelhante acontece nos esgrafiados. Em tábuas de madeira, linhas se sobrepõem à terra do Paraná. Das escamas de cobra aos padrões de faces vegetais, Brandazza narra uma infinidade de histórias numa única peça.
“Queria que este salão fosse vivo, tátil e orgânico. É como se o espaço pudesse gritar, com memórias do presente, passado e futuro. São projetos que refletem a natureza destes mitos —contornos que se cruzam, personagens que se sobrepõem, figuras híbridas que desafiam definições fixas”, diz o argentino.
Segundo a Conadep, o Congresso Nacional das Defensoras e Defensores Público, Brandazza é filho do primeiro homem a desaparecer durante a ditadura militar na Argentina. Junto do extermínio indígena, esta é outra bagagem que inspira sua criação.
“Diante dessa memória dolorosa da violência e de corpos que desapareceram, exercito uma memória que não esquece nem oculta. Ela convida a se pensar sobre o passado e os vestígios que restam no presente.”