Defender a liberdade de imprensa no Brasil de hoje nem sempre é tarefa fácil, apesar de necessária. Temos sido atravessados por uma onda de desinformações com fins políticos, sociais e econômicos nem sempre de compreensão imediata. Combater algo tão sério —facilitado pela dinâmica impressionante das redes sociais— e, ao mesmo tempo, preservar o que é arma contra a desinformação (o jornalismo profissional) exige reflexões que muitas vezes só surgem de quem vive a rotina de apurar, checar a publicar informação com responsabilidade.

Falamos aqui de um julgamento recente do Supremo Tribunal Federal no qual atuamos pela Abraji: o Tema 995 de repercussão geral. Nesses casos, o STF firma uma tese que deve ser seguida por todos os tribunais. A discussão abordou a possibilidade de responsabilizar um veículo que publica uma entrevista em que o entrevistado acusa falsamente alguém de cometer um crime.

Elaborar uma tese de repercussão geral nunca é simples. Não basta a intenção de quem redige, é preciso considerar como a redação será aplicada em contextos diversos. E, nesse tema, o alerta é maior.

O cerceamento da imprensa no Brasil tem raízes profundas e autoritárias. A Lei de Imprensa de 1967, que institucionalizou a censura, foi julgada inconstitucional apenas em 2009. Mais recentemente, especialmente no governo anterior, houve recorde de ataques a jornalistas por possibilitarem visões críticas e independentes.

O debate não se resolve em extremos: como pontuaram ministros, há veículos que agem de má-fé, espalhando desinformação até por meio de entrevistas encomendadas. Mas isso não se confunde com o jornalismo profissional —e é justamente por isso que o Judiciário precisa saber diferenciar. O desafio continua sendo separar desinformação de informação desconfortável.

Foram meses de reflexões. O relator, ministro Fachin, primeiro propôs uma tese bem-intencionada, mas com um trecho genérico sobre responsabilização da imprensa. O risco era que esse tópico fosse utilizado em toda e qualquer situação. Na prática, esse trecho passou a ser usado para justificar condenações diversas: de publicações de fotos sem autorização a erros factuais sem qualquer relação com entrevistas. Havia ainda expressões vagas e nenhuma previsão para situações excepcionais, como entrevistas ao vivo.

Criar brechas para responsabilizações equivocadas inibe o jornalismo. Multiplicam-se ações infundadas e veículos deixam de publicar por medo de processos, prejudicando o debate público livre e de qualidade.

Diversas entidades, como a Abraji, se mobilizaram sobre o assunto. Atuamos no processo como amicus curiae e levamos à corte diagnósticos técnicos e exemplos concretos dos riscos de um Judiciário instrumentalizado para intimidar a imprensa. Foi a partir desse movimento que o julgamento foi ajustado e se aproximou mais da realidade vivida nas Redações.

A tese final incluiu um ponto essencial: a exigência de dolo (intenção de divulgar algo falso) ou culpa grave (negligência profissional evidente), alinhando essa tese com decisões anteriores. Caiu o tópico inicial que falava em responsabilização geral da imprensa e foi incluída a exceção relativa às entrevistas ao vivo, reconhecendo as limitações práticas desse formato.

Esse movimento de escuta merece ser celebrado e, mais do que isso, precisa servir de exemplo. Ter a humildade de considerar importantes detalhes antes desconhecidos e ouvir o que a sociedade tem a dizer é dever de quem tem nas mãos poder para decidir temas que impactam diretamente a vida das pessoas. É justamente no encontro com as complexidades que damos um passo rumo ao que é mais justo.

O resultado, apesar de não ser perfeito, é uma formulação mais clara, equilibrada e conectada com a realidade de quem faz jornalismo sério. É assim que o direito se fortalece como ferramenta de democracia, não de silenciamento. E é de imprensa, mas também de democracia, que estamos falando.

Porque não há democracia saudável sem imprensa verdadeiramente livre.



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