O esquema de segurança reforçado, com revista individual feita com detectores de metais, montado para a participação do historiador israelense Ilan Pappe, nesta sexta (1), não deixava dúvidas sobre a apreensão em torno de sua presença na 23ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty.

“Houve pressão para que eu não falasse aqui nesta noite”, afirmou Pappe em sua primeira fala. “Sou grato ao festival por ter permitido que a gente pudesse discutir a questão palestina de maneira livre e democrática.”

Judeu israelense nascido em Haifa em 1954, Pappe é um dos críticos mais ferrenhos de Israel e expoente de um movimento de historiadores israelenses conhecidos por uma nova historiografia, feita a partir de achados nos arquivos oficiais do país.

Sua pesquisa de documentos oficiais do governo israelense respaldou conclusões contundentes, “como a que dá título a um de seus livros lançados no Brasil, “A Maior Prisão do Mundo: Uma História dos Territórios Ocupados por Israel na Palestina”, lançado pela editora Elefante. À Folha, o diretor artístico da Flip, Mauro Munhoz, afirmou ter recebido “algumas manifestações elegantes” de pessoas ligadas à comunidade judaica que sugeriram a inclusão de outro convidado que fizesse contraponto a Pappe.

A reportagem apurou que foram três as manifestações de pessoas ligadas à comunidade feitas em nome de organizações e coletivos judeus. “A curadoria da Flip tem autonomia, e isso é um princípio fundamental. Está no nosso DNA. Não temos a pretensão de ser um seminário acadêmico sobre o tema”, explicou Munhoz. “A Flip é conhecida pelos debates e pluralidade de visões. Há um profundo respeito pela cultura judaica. Já recebemos muitos autores israelenses e judeus.”

Outras agendas do historiador no Brasil também sofreram com manifestações contrárias à apresentação de Pappe. Na noite da última quinta, o diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Adrián Pablo Fanjul, recebeu uma carta da organização judaica internacional Bnai Brith na qual expressa “profunda preocupação” diante da palestra de Pappe programada para a próxima terça (5) na Casa de Cultura Japonesa da universidade.

O texto afirma que Pappe é conhecido por discursos “agressivos, que extrapolam os limites da crítica política legítima” e alimentam o “antissemitismo contemporâneo“. “Fiquei surpreso. Entendo que haja divergências sobre o que acontece hoje na Palestina, mas o que é inédito é o pedido de cancelamento”, disse o Fanjul à Folha, que é judeu e classificou a situação como “insólita”.

Outra agenda de Pappe na capital paulista acontece na quarta (6) na Faculdade de Direito da USP. O ato em solidariedade ao povo palestino foi inicialmente programado para o Salão Nobre do prédio no largo São Francisco, mas acabou relegado à sala dos estudantes, mesmo com a participação do ex-ministro do STF Francisco Rezek e da relatora especial da ONU, Francesca Albanese.

Em postagem em seu perfil numa rede social, a professora da Faculdade de Direito Eunice Prudente, ex-secretária de Justiça da gestão Ricardo Nunes na prefeitura, afirmou que não autorizou o uso de seu nome no material de divulgação do ato político do dia 6 e que é solidária com as “vítimas da crise humanitária em Gaza, ao mesmo tempo em que expressa profunda preocupação com a escalada da violência antissemita no mundo, incluindo o Brasil”.

Ao apresentar Pappe na abertura da mesa na Flip, a curadora Ana Lima Cecílio disse que a escolha do historiador foi a “decisão mais importante que fizemos como curadoria”.

Entrevistado pela historiadora Arlene Clemesha, professora do Departamento de Árabe da USP, Pappe contou que teve uma infância e adolescência tradicional e que partilhava “da ideologia, das narrativas e da maneira israelense de olhar para a realidade do passado e do presente de Israel” até os 20 anos e poucos anos.

Ao escolher a historiografia e se interessar pela pesquisa sobre seu próprio país, Pappe conta ter feito descobertas que contradiziam tudo o que ele tinha aprendido na escola, na família e na universidade. Ele conta ter sido ingênuo ao imaginar que suas descobertas seriam bem recebidas entre israelenses e, confrontado, disse ter escolhido continuar a pesquisar e a “desafiar a narrativa israelense sobre sua história”.

“Sentia que tinha responsabilidade pelas coisas terríveis que estavam sendo feitas em meu nome”, disse. Pappe chama esse processo de uma jornada moral, que o levou a ser expulso da Universidade de Haifa, onde lecionava há mais de 20 anos, e a se mudar para a Inglaterra, onde hoje leciona na Universidade de Exeter. Em sua análise, Pappe afirma que a ideia de um estado judeu na Palestina, em meio ao mundo árabe, era um projeto europeu, e não judeu.

Pappe afirma que a criação de um movimento sionista na Palestina se desenvolveu como um movimento de colonialismo de povoamento, que se caracteriza pela ocupação de territórios dos quais se quer “livrar da população originária”. Essa eliminação dos nativos de territórios ocupados ele chama de limpeza étnica da Palestina, quando, em 1948, centenas de milhares de palestinos foram expulsos de suas terras.

Ao anexar novas terras em 1967, Israel teria ganhado território mas também uma população indesejada. “Em vez de expulsarem 2 milhões de palestinos, resolveram colocá-los em prisões para que eles não fizessem parte da demografia local.”

Para Pappe, Gaza é um campo de refugiados gigante com um modelo prisional estabelecido. “Os palestinos não ficaram passivos diante disso. Houve a primeira Intifada, depois uma segunda e os ataques de 2023 podem ser considerados um terceiro levante.”

O historiador diz que os locais alvo dos ataques de 7 de outubro de 2023, que mataram 1.200 pessoas em Israel, haviam sido construídos sobre as ruínas de vilas palestinas destruídas em 1967. “Isso não justifica a violência que foi praticada ali, mas é preciso tratar do contexto. As pessoas em Gaza vivem sob um regime que não se vê desde a Segunda Guerra Mundial”, afirmou. “Os palestinos estão em vias de extinção.”



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