
Rascunhos vazados dos relatórios anuais de direitos humanos do Departamento de Estado americano indicam que o governo de Donald Trump pretende reduzir de forma drástica as críticas feitas por Washington a certos países estrangeiros com registros extensos de abusos.
Os rascunhos para El Salvador, Israel e Rússia, cujas cópias foram analisadas pelo jornal americano The Washington Post, são mais curtos do que os preparados no ano passado pelo governo do democrata Joe Biden. Eles eliminam todas as referências a indivíduos LGBTQIA+ ou a crimes contra eles, e as descrições de abusos governamentais foram suavizadas.
Em relação a El Salvador —que, a pedido do governo Trump, concordou em encarcerar migrantes deportados dos Estados Unidos— os rascunhos dizem que o país não teve “relatos credíveis de abusos significativos de direitos humanos” em 2024.
O relatório anterior do Departamento de Estado para o país, documentando 2023, identificou “questões significativas de direitos humanos”, incluindo assassinatos, casos de tortura e “condições prisionais duras e que ameaçam a vida”.
Vários venezuelanos que o governo Trump enviou para uma prisão salvadorenha disseram que foram submetidos a espancamentos.
Os rascunhos vazados dos relatórios para El Salvador, Israel e Rússia mostram como o governo Trump está repensando o papel dos EUA na defesa global dos direitos humanos.
Os documentos também são consistentes com orientações internas circuladas no início deste ano por líderes do Departamento de Estado, que aconselharam a equipe a reduzir os relatórios ao mínimo exigido pelas diretrizes estatutárias, bem como remover referências à corrupção governamental e outros abusos que Washington historicamente documentou.
Procurado, o Departamento de Estado não respondeu sobre os documentos analisados pelo Washington Post.
Diplomatas americanos compilam os relatórios anuais de direitos humanos há quase 50 anos. Suas descobertas são consideradas as mais completas e abrangentes do gênero e são com frequência utilizadas por tribunais dentro e fora dos EUA
Esses relatórios devem ser enviados ao Congresso até o final de fevereiro. A divulgação pública geralmente acontece em março ou abril.
O Departamento de Estado ainda não divulgou os relatórios deste ano, que compilam observações feitas em 2024. Funcionários atuais e ex-funcionários dos EUA dizem que a maioria dos documentos deste ano estava quase concluída quando Biden deixou a Presidência, em janeiro.
Os rascunhos para El Salvador e Rússia estão marcados como “finalizados”, enquanto o rascunho para Israel está marcado como “verificação de qualidade”. Todos foram editados nos últimos dias, mostram os documentos. Não está claro se os relatórios que serão transmitidos ao Congresso e divulgados ao público terão os mesmos conteúdos de seus rascunhos.
Uma orientação interna transmitida pelos líderes do Departamento de Estado no início deste ano instruiu os diplomatas responsáveis pela elaboração dos relatórios a retirar referências a potenciais violações de direitos humanos, incluindo governos que deportaram pessoas para um país em que poderiam ser submetidas a tortura; crimes que envolvem violência contra pessoas LGBTQ+ e corrupção governamental.
A orientação foi escrita por Samuel Samson, nomeado político de Trump no Departamento de Estado. Samson chamou a atenção depois de escrever um artigo, em maio, criticando a Europa pelo que ele disse ser um retrocesso do continente com “foco em censura digital, migração em massa, restrições à liberdade religiosa e numerosos outros ataques à autogovernança democrática”.
Samson foi encarregado de revisar os relatórios para El Salvador, Israel e Rússia.
Embora os três relatórios continuem a descrever abusos de direitos humanos nesses países, cada um foi reduzido em comparação com o ano anterior e todos apresentam mudanças significativas na linguagem usada para descrever supostos abusos. O rascunho preparado para Israel, por exemplo, tem 25 páginas; o relatório do ano passado tinha mais de 100 páginas.
Enquanto isso, uma comparação dos documentos sobre El Salvador mostra que o governo Trump está minimizando a história de violência prisional do país, enfatizando que houve uma redução geral, ao mesmo tempo em que afirma que as supostas mortes estavam sob revisão do governo.
Trump manifestou simpatia pelo presidente de El Salvador, Nayib Bukele, e o recebeu no Salão Oval este ano depois que o líder garantiu um acordo para deportar pessoas para uma notória megaprisão do país.
A Embaixada de El Salvador em Washington não respondeu a pedidos de comentários.
O escrutínio da corrupção e da independência judicial também foi reduzido no rascunho do relatório para Israel. O documento de 2023 compilado pelo governo Biden aborda o julgamento por corrupção do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, outro dos aliados internacionais de Trump, e os esforços para a implementação de uma reforma judicial, que os críticos dizem ameaçar a independência do Judiciário do país.
Já o rascunho do relatório do governo Trump para Tel Aviv não faz menção à corrupção ou ameaças à independência do Judiciário israelense.
Relatórios anteriores de direitos humanos também mencionaram a vigilância israelense de palestinos e restrições à sua movimentação, incluindo uma descoberta da Anistia Internacional sobre o uso por Israel de um “sistema experimental de reconhecimento facial para rastrear palestinos e impor restrições de movimento”. Essa questão também não é abordada no rascunho do relatório.
A Embaixada de Israel não respondeu a pedidos de comentários.
Os rascunhos dos relatórios examinados pelo Washington Post não contêm referência à violência com base em gênero ou violência contra pessoas LGBTQIA+. Keifer Buckingham, que trabalhou nessas questões no Departamento de Estado até janeiro, falou em “omissão gritante” no caso da Rússia, onde a Suprema Corte do país havia proibido organizações LGBTQIA+ e as rotulado de extremistas.
A Embaixada da Rússia não respondeu a pedidos de comentário.
Buckingham criticou o secretário de Estado americano, Marco Rubio, que, como senador dos EUA por muitos anos, foi um defensor vocal dos direitos humanos.
“O secretário Rubio afirmou várias vezes que seu Departamento de Estado não havia abandonado os direitos humanos, mas está claro por esta e outras ações que este governo só se preocupa com os direitos humanos de algumas pessoas, em alguns países, quando é conveniente para eles”, disse Buckingham, que agora trabalha como diretor administrativo no Conselho para Igualdade Global.
Durante seu tempo no Comitê de Relações Exteriores do Senado, Rubio elogiou os relatórios anuais de direitos humanos do Departamento de Estado. Em 2012, ele disse que “o mundo tem sido um lugar melhor [por dois séculos] porque os EUA se esforçaram para defender esses direitos humanos fundamentais tanto em casa quanto no exterior”.
“O relatório anual de direitos humanos do Departamento de Estado lança luz sobre o fracasso dos governos estrangeiros em respeitar os direitos fundamentais de seus cidadãos”, disse ele em uma declaração na época, acrescentando que era importante para o mundo saber que “os EUA estarão com pessoas que buscam liberdade em todo o mundo e não tolerarão violações contra seus direitos”.
Funcionários dos EUA apontaram para um discurso proferido por Trump durante uma visita ao Oriente Médio, em maio, como um exemplo da nova forma como Washington se relaciona com o mundo.
Falando em Riad, na Arábia Saudita, Trump criticou “intervencionistas ocidentais dando palestras sobre como viver ou como governar”.
Esta mudança dos EUA na promoção dos direitos humanos coincidiu com uma mudança na promoção da democracia. Em um telegrama enviado em julho, Rubio instruiu os diplomatas a não mais comentarem publicamente sobre as eleições de outros países, incluindo fazer uma avaliação se a eleição foi “livre e justa”, a menos que haja um “interesse claro e convincente da política externa dos EUA para fazê-lo”.
No mês passado, o governo Trump intensificou as sanções contra o Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil, Alexandre de Moraes, intensificando uma disputa com o governo brasileiro pela acusação do ex-presidente Jair Bolsonaro, aliado de Trump, por seu suposto papel em um plano de golpe em 2022.
Ao anunciar essas sanções, o Departamento do Tesouro dos EUA invocou a Lei Magnitsky, que permite ao governo americano impor penalidades a estrangeiros acusados de corrupção e violações de direitos humanos.
Em comunicado, Rubio afirmou que Moraes havia cometido “graves abusos de direitos humanos, incluindo detenção arbitrária envolvendo flagrantes negações de garantias de julgamento justo e violações da liberdade de expressão.” Moraes disse que o tribunal não cederá a pressões estrangeiras, mas, nesta quarta, flexibilizou algumas restrições da prisão domiciliar de Bolsonaro.