
“O Que Só Sabemos Juntos”, com direção de Luiz Villaça, é um espetáculo que une dois ícones da dramaturgia brasileira – Denise Fraga e Tony Ramos – em uma narrativa sensível e profundamente humana. A peça mergulha em temas como memória, ancestralidade, afeto e os laços que nos unem e separam, apresentando um diálogo rico e emocionante entre seus personagens.
A peça começa no terreno do palpável: “Qual seu canto favorito em casa?” e “O que levaria consigo se tivesse apenas um minuto para fugir?” são perguntas que despertam histórias reais na plateia. Objetos cotidianos ganham significado afetivo nas mãos de Tony Ramos e Denise Fraga – um relógio quebrado, uma carta amarelada, a descrição de um tapete herdado.
Quando Tony introduz um trecho de “Tio Vânia”, a peça ganha outras camadas. Na cena em que um pai, diante de uma casa inundando, pede à filha que salve “o livro vermelho” (uma edição da peça de Tchékhov), o espetáculo cria um diálogo entre ficção e realidade. O livro que o personagem escolhe salvar entre todas as posses fala justamente sobre arrependimentos e vidas não vividas – ecoando a pergunta que Denise fará em seguida: “O que nos define, o que fizemos ou o que deixamos de fazer?”
A pergunta ressoa de forma especial porque surge organicamente das histórias antes compartilhadas. Um objeto herdado traz consigo não só a memória da avó, mas talvez os planos que ela não concretizou. O livro marcado contém tanto as páginas lidas quanto as lições não aplicadas.
Denise conduz essa transição com leveza e sensibilidade. Quando um espectador menciona que salvaria fotos da família, ela pergunta: “E das que não foram tiradas, o que nos resta?” Tony, enquanto isso, folheia o livro de Tchékhov como quem busca respostas nas páginas alheias. A direção une esses elementos com uma iluminação que gradualmente transforma objetos em sombras e pensamentos em luz.
O momento mais potente ocorre quando as histórias do público, o texto de Tchékhov e a reflexão sobre sonhos não realizados se entrelaçam. A peça sugere que talvez nossos livros salvos – sejam eles objetos reais ou memórias intocadas – falem tanto sobre nós quanto nossas ações visíveis, e que no espaço entre o que foi vivido e o que foi apenas imaginado, encontramos os fios mais frágeis e verdadeiros que nos conectam aos outros.
No final, fica a sensação de que todos saímos carregando nosso próprio “livro vermelho” imaginário – aquele que, numa emergência, revelaria o que realmente somos.
Três perguntas para…
… Denise Fraga
Como vocês criam um ambiente de confiança para que o público compartilhe histórias tão pessoais no início do espetáculo?
Acho que essa confiança vem de muito tempo. Desde 2008, eu recebo o público na porta, criando proximidade. Quando eu fiz “Retrato Falado” [quadro de humor baseado na vida real no “Fantástico”], a gente sempre falava: “Não podemos rir dela, mas podemos rir com ela”. É sobre respeitar a história do outro, ser uma homenagem, não uma chacota.
Em “Eu de Você”, recebemos quase 300 histórias pessoais, cheias de vulnerabilidade. Isso me deixou ainda mais responsável e honrada com a confiança delas. Em “O Que Só Sabemos Juntos”, eu começo conversando de forma natural — “É sua filha? Onde moram?” —, sem perguntas diretas. No início, as pessoas desconfiam, mas, quando percebem que meu interesse é genuíno, surge um brilho nelas. É lindo ver isso.
Desenvolvi técnicas para me concentrar, olhar nos olhos, mesmo com gente chamando e pedindo foto. É um exercício de escuta. E o Tony Ramos entrou nessa com a gente. Ele poderia achar difícil, mas faz com tanto amor… É emocionante ver ele se conectando com o público, ouvindo histórias e recebendo gratidão. A TV te dá um público, mas não essa proximidade. Ver ele se emocionar com isso é muito bonito.
Enfim, é uma construção que vem de anos, de respeito, escuta e essa troca que nutre a todos.
De que maneira você descreveria a dinâmica de cena com Tony Ramos nesse formato tão particular de peça?
Essa peça é diferente do “Eu de Você” — talvez até mais perigosa. Estamos ali, olho no olho, em conversas com a plateia. E estar ao lado do Tony nesse terreno — escorregadio, mas delicioso — nos uniu muito. Foi lindo ver o prazer dele em brincar neste lugar.
Quando ele propôs fazer algo juntos, depois de se emocionar com “Eu de Você”, ele disse que queria justamente isso: interação, emoção à flor da pele. E vejo ele feliz nesse espaço. Atrás do palco, a gente sempre divide as histórias que ouvimos. A peça traz um mar de vivências, e ele se entrega totalmente.
É uma felicidade estar ao lado dele, desse príncipe da gentileza, esse grande amigo. Já éramos próximos, mas ver seu entusiasmo com essa experiência — esse teatro diferente, que nem sei se chamo de “peça” — tem sido lindo. A reverberação disso tudo tem sido muito especial. A gente vê coisas mágicas acontecendo.
Por que o público deveria sair de casa para ver “O Que Só Sabemos Juntos” em vez de consumir entretenimento em casa?
O teatro é um lugar precioso – e talvez fique ainda mais. Quando você vai, desliga o celular e se entrega, acontece algo raro hoje: um mergulho profundo. No cinema ou em shows, as pessoas ficam checando o telefone, mas no teatro há esse pacto. Aqueles primeiros minutos sem distração te levam a um estado que poucos conseguem alcançar sozinhos hoje.
É como um sonho coletivo – todo mundo acreditando na mesma história, sentindo juntos. O teatro fortalece a imaginação, algo que as telas estão nos roubando. E tem mais: é onde você descobre que não está sozinho. Ri e se reconhece naquilo. Simone de Beauvoir dizia que a arte traz o “consolo da fraternidade”. É isso.
Se alguém diz que não vai ao teatro porque é caro, eu pergunto: “Quantas cervejas você toma num rolê?” Se for quatro, sugiro pegar o dinheiro de duas e ir ao teatro – tem ingressos acessíveis, tem teatro de graça até. Depois, toma as outras duas com os amigos, mas agora com a cabeça cheia de histórias. O teatro potencializa tudo.
Tem gente indo pela primeira vez e saindo transformada. É sobre recuperar o fascínio pela vida. A existência não é fácil, mas no teatro você se sente parte de algo maior. Vale cada minuto fora de casa.
Tuca – rua Monte Alegre, 1.024 – Perdizes, região oeste. Sex., 21h; sáb., 20h e dom., 17h. Até 28/0. Duração: 90 minutos. A partir de R$ 100 (meia-entrada) em sympla.com.br e na bilheteria do teatro.