Quando viralizou um vídeo de um youtuber japonês mascarado analisando casas fictícias a partir de suas plantas baixas, pouca gente imaginava que ali nascia uma nova voz da literatura de horror. Uketsu, como se apresenta, não mostra o rosto nem revela o nome verdadeiro. Surgiu na internet falando sobre desenhos infantis perturbadores, casas sem janelas e sons vindos do nada. O que começou como um canal de nicho no YouTube, com vídeos distorcidos e trilhas desconfortáveis, se transformou num best-seller internacional.

Seu primeiro livro, “Casas Estranhas”, adaptado do vídeo que o tornou conhecido em 2020, vendeu mais de 1,8 milhão de exemplares no mundo. No Brasil, a edição lançada pela Intrínseca ultrapassou 30 mil cópias. O segundo, “Imagens Estranhas”, chegou primeiro ao Brasil pelo selo Suma, da Companhia das Letras. Ambos mantêm o mesmo princípio: o leitor é conduzido por imagens ambíguas e textos econômicos, em que pistas visuais e ausência de respostas diretas constroem o clima de mistério.

Em “Casas Estranhas”, o ponto de partida são desenhos arquitetônicos de imóveis com elementos fora do lugar: cômodos sem porta, escadas que não levam a lugar nenhum, espaços que desafiam a lógica arquitetônica. A narrativa se organiza em torno dessas anomalias espaciais, enquanto o leitor tenta entender o que está errado e por quê. Já em “Imagens Estranhas”, o foco são desenhos infantis encontrados em cenas de crimes.

Cada ilustração carrega pistas visuais e detalhes ambíguos que, somados aos breves textos de contexto, despertam um sentimento de inquietação crescente. Nos dois livros, o horror não é explícito: ele se constrói pela sugestão, pelo silêncio e pela sensação de que há algo profundamente errado à espreita, mas nunca revelado por completo.

Uketsu diz que não conseguiria criar nada se tivesse que se apresentar como ele mesmo. “Quando me disfarço de outra pessoa, me sinto estranhamente corajoso e consigo expressar o que quero. A máscara funciona como um tubo conector entre eu e o mundo exterior”, afirmou ele à Folha.

A figura do escritor materializa, de forma quase radical, o conceito proposto por Roland Barthes em seu ensaio “A Morte do Autor”. Barthes defende que o sentido de uma obra não deveria ser controlado por quem a escreve, mas construído por quem a lê. Uketsu leva essa lógica ao limite: é um autor que não apenas se recusa a explicar suas histórias, como também anula sua presença pública.

Sem rosto, sem nome, sem biografia. Esse apagamento deliberado do “eu” não é vazio. Pelo contrário, potencializa o mistério das obras e transfere a autoridade criativa para quem consome. Ele não narra para o leitor, ele propõe enigmas para serem decifrados.

Uketsu se torna onipresente: ele vive nas lacunas, nas teorias, nas especulações que seus leitores constroem.

A ideia de anonimato, no caso dele, não é uma estratégia de marketing, mas parte da forma como a obra opera, sem personagens tradicionais ou narrativas fechadas. “Começo sempre pela situação. Algo como ‘há um espaço inexplicável na planta de uma casa’ ou ‘a criança desenhou algo estranho antes de ser assassinada’. A partir daí, construo o resto”, explicou.

Seus livros funcionam como quebra-cabeça e ecoam um tipo de engajamento típico da internet: fragmentado, especulativo e participativo. Em fóruns e redes sociais, leitores compartilham teorias, analisam plantas baixas, identificam padrões e discutem interpretações. A interação faz parte da experiência de leitura.

Uketsu se soma a um grupo de autores que migraram das redes para o mercado editorial com força: a poeta Rupi Kaur, o romancista Chuck Tingle, a best-seller Colleen Hoover e até o brasileiro Felipe Neto construíram público antes de chegar às prateleiras. Mas, no caso do terror, o efeito parece mais intenso. YouTube e TikTok funcionam como terreno fértil para narrativas de mistério, onde a ambiguidade e o desconforto têm mais força do que as explicações.

Com forte apelo entre jovens, suas obras desafiam a lógica tradicional do susto e propõem uma experiência mais interativa e imagética, muito próxima da linguagem dos fóruns, dos vídeos virais e dos jogos de terror indie.

O medo que o autor cultiva não vem de monstros, fantasmas ou assassinatos explícitos. Seu horror é arquitetônico, quase burocrático. Provoca o medo através da falha da lógica. Essa mudança reflete uma transformação mais ampla no imaginário do terror contemporâneo, que se afasta do susto tradicional e mergulha no desconforto cotidiano.

Uketsu representa esse novo tipo de horror que é estrutural, silencioso e digital. Um terror que opera na incerteza, que se espalha por imagens mal resolvidas, espaços ambíguos e ruídos não identificados. E é justamente por não dar respostas que ele desestabiliza tanto.

“Se eu tivesse nascido em uma época sem internet, teria passado a vida inteira em um supermercado, com meus desejos criativos guardados em segredo. A internet me deu coragem para dar o primeiro passo”, disse o autor.

No Brasil, o sucesso de “Casas Estranhas” e “Imagens Estranhas” aponta para uma abertura do mercado a narrativas que rompem a lógica tradicional do livro ilustrado. Agora o idealizador mascarado já escreveu “Casas Estranhas 2”, que será lançado em primeiro de outubro deste ano. Se depender da internet, a próxima sensação literária já está online. Só falta virar página.



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