
Em entrevista ao programa Roda Viva exibido em março de 2024, Preta Gil comentou como as dificuldades vivenciadas por ela a partir do diagnostico de câncer haviam alterado a sua percepção da morte.
Na ocasião, Preta relatou uma conversa que teve com o pai, Gilberto Gil, quando, ainda no início do seu tratamento, a artista quase veio a falecer em decorrência de uma infecção generalizada:
“Quando passei por essa experiência, o meu pai foi me visitar no hospital […]. Ele falou sobre eu encarar a morte, sobre a possibilidade de que a finitude poderia estar chegando para mim e que eu não tivesse medo. Obviamente, eu fiquei apavorada, mas, refletindo naquelas noites, naquelas madrugadas muito difíceis em uma UTI, fui me conectando com essa energia. A energia da morte é de vida também. A gente só morre porque a gente vive.” “Então, comecei a lidar com isso. Hoje, tenho menos medo da morte. Tenho medo de não viver.”
As observações de Preta sobre a morte e a doença me fizeram pensar em algumas das reflexões compartilhadas pelo médico e escritor inglês Oliver Sacks nos ensaios que ele publicou durante os dois últimos anos da sua vida.
Quatro desses ensaios estão reunidos em “Gratidão” (2015), volume no qual Sacks descreve como conseguiu levar uma vida plena de sentido até o fim, apesar das limitações da velhice e dos desconfortos da doença: “Quando chegar a minha hora, espero morrer na ativa”.
Diagnosticado com melanoma ocular aos 72 anos, Sacks passou por um tratamento médico agressivo à base de radiação e aplicações de laser que lhe custaram a visão do olho direito. Nove anos mais tarde, o câncer voltou formando múltiplas metástases no fígado do autor, que, segundo os especialistas, teria apenas mais seis meses de vida.
No ensaio em que expõe o seu diagnóstico terminal, Sacks comenta: “Não posso fingir não ter medo. Mas o sentimento que predomina em mim é a gratidão. Eu amei e fui amado; tive muito e dei muito em troca; eu li, e viajei, e pensei, e escrevi. Eu tive com o mundo o relacionamento especial que os escritores e os leitores têm com ele. Acima de tudo, eu fui um ser senciente, um animal pensante sobre este belo planeta, o que, por si só, já foi um enorme privilégio e uma aventura”.
Sacks morreu em 2015 aos 82 anos. Ele teve a sorte de poder experimentar na velhice o que descreveu como sendo uma espécie de expansão da sua vida mental em decorrência das vivências e perspectivas acumuladas ao longo das décadas:
“Nesta altura já tivemos uma longa experiência de vida, não só da nossa, mas também da de outros. Já vimos triunfos e tragédias, altos e baixos, revoluções e guerras, grandes realizações e profundas ambiguidades também. Já assistimos notáveis teorias ascenderem e acabarem derrubadas por fatos teimosos […]. Aos oitenta podemos relembrar um vasto panorama e ter um senso claro de história vivida impossível aos mais novos. Posso imaginar, sentir nos ossos, o que é um século, coisa que não podia fazer aos quarenta ou sessenta.”
Embora, como próprio autor comenta, cada ser humano seja único e insubstituível e, por isso mesmo, independente da idade, cada morte represente uma lacuna que jamais poderá ser preenchida, o que mais mexeu comigo quando eu li sobre a morte de Preta Gil foi perceber que a velhice não é uma certeza.
Senti algo parecido quando, em 2020, um dos meus amigos faleceu antes mesmo de completar 40 anos. Desde então me questiono como será que ele estaria hoje e no que será que ele poderia ter se transformado mais tarde. Se escrevo sobre isso agora é porque a morte de uma figura pública tem o poder de nos fazer pensar sobre as nossas perdas e aprender a lidar com as peripécias do destino.
É neste sentido que o relato de Preta Gil ao programa Roda Viva também nos permite uma reflexão semelhante àquela que nos foi transmitida por Oliver Sacks nos seus últimos ensaios: “Agora estou face a face com a morte, mas isso não quer dizer que não quero mais nada com a vida.”
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